novembro 20, 2013

Belle de Jour (1967)

Belle de jour

Belle de jour (1967) de Luis Buñuel
o texto sobre o filme pode ser lido no ÀPaladeWalsh

novembro 06, 2013

Gravity (2013)

Gravity de Alfonso Cuarón, 2013, EUA, 8/10

Gravity

Gravity é o equivalente a nadar numa piscina sem pé e sem bordas, sem possibilidade de descanso. A vulnerabilidade do espectador - por não saber o que vai acontecer - convive com a vulnerabilidade das personagens - por estarem sós - numa simbiose que ampara o filme. Cuáron afirma desta forma o paralelo entre a fragilidade humana e a sua resiliência, num elogio ao espírito de sobrevivência que tende a vir à superfície quando as circunstâncias são piores. Apesar de todo o aparato tecnológico, partículas em 3D e longos takes, é o foco constante no minimalismo da sobrevivência de uma personagem que é o oxigénio do filme. Tal como em Castaway, o filme é um teste existencialista, sobre o renascer da vontade de viver, ao perceber que se está só, e quando confrontado com a mortalidade, como enfrentar a própria efemeridade.

O actor transforma-se no único ponto de referência, e a sua respiração sôfrega torna-se a âncora para a empatia do espectador, sinal de um coração agitado. A solidão e desorientação tornam-se evidentes à medida que surgem as dificuldades intermináveis: o filme compartimenta a acção numa série de obstáculos que são necessário ultrapassar, para ultrapassar o obstáculo final, como que numa lição de vida de como reduzir sucessivamente os problemas à mais pequena tarefa, até à seguinte. O percurso da personagem define-se em direcção ao tal teste final, entre parar ou não desistir, tal como acontece em Castaway - há que escolher continuar a empurrar a pedra colina acima porque um dia ela pode não descer.

É isto suficiente para criar um objecto cinematográfico de relevo? Sim, pela parte em que procura testar os limites que fazem funcionar o próprio meio. A criação de um mundo fechado, definido por regras próprias que lentamente são testadas, como constrangimentos: uma imersão sem saída e total no cenário criado; um único ponto de contacto (o actor), isolado num cenário que o ataca por todos os lados; a possível redenção que aparece perto do fim, mas que mesmo assim parece inatingível - a terra ali tão perto mas tão longe - são elementos que repetem-se desde Children of Men. Quando parece que já tudo foi inventado, é na capacidade de entregar-se à imaginação do espectador que reside o maior trunfo de Gravity. Porque por toda a solidão que nos é mostrada, é uma alusão a uma imagem que não é vemos que pinta o quadro de maior solidão: a da personagem de Sandra Bullock a guiar sozinha por noites intermináveis, para adiar o regresso a uma casa vazia.

outubro 22, 2013

35 rhums (2008)

35 rhums

35 rhums (35 Shots de Rum, 2008) de Claire Denis
o texto sobre o filme pode ser lido no ÀPaladeWalsh

outubro 04, 2013

High School (1968)

Frederick Wiseman é um dos mais notáveis e influentes cineastas na área do documentário, responsável por criar uma linguagem própria, expandida ao longo de uma vasta obra com mais de quarenta anos. Apesar disso, apenas recentemente os seus filmes tiveram direito a estreia comercial nas salas portuguesas, com os filmes La danse (A Dança, 2009) e Crazy Horse (2011). High School (1968) é o segundo filme de Wiseman, e uma obra fundamental para compreender o apelo universal do seu cinema e conhecer o estilo que Wiseman ajudou a criar, que define o seu legado.

High School

O direct cinema é uma corrente do documentário que surgiu na década de 60, desenvolvida por Wiseman e outros realizadores, entre os quais os irmãos Maysles (Salesman, 1969 e Grey Gardens, 1975) e D.A. Pennebaker (Primary, 1960). Este movimento apareceu primeiro que tudo devido a dois avanços tecnológicos: a maior portabilidade das câmaras de filmar, e a capacidade de gravar som em directo, e assim reagir aos eventos sem ter que interromper a acção. Esta maior liberdade de movimentos e maior continuidade permitiram a um conjunto de realizadores responder a um dilema moral na área dos documentários. Desde Dziga Vertov e a kino-pravda (cinema-verdade) que existia a ambição de um retrato objectivo e fiel da realidade, em que o cinema teria um papel apenas testemunhal e não interveniente. Mas dada a falta de meios, a falta de capacidade de reagir à realidade à medida que esta se alterava, Vertov e outros tinham que recorrer a uma encenação, para criar a ilusão de uma imagem próxima da realidade, tinham que criar a ideia da não-presença do realizador.

Agora com o direct cinema, a preocupação em não interferir com o que se filmava, em não ser parte activa da acção mas mero espectador, é assim ultrapassada, através de uma presença reduzida, na procura de chegar a uma cópia mais exacta da realidade. Como que um cientista a tentar minimizar os factores exógenos em relação ao que observa, Wiseman, através de uma ocupação continuada do espaço onde filmava, esperava que os sujeitos filmados se habituassem à presença da câmara. Apesar de compreender que a sua simples presença influenciava as respostas e comportamentos das pessoas filmadas, esperava que estes eventualmente agissem naturalmente. Os filmes de Wiseman e do direct cinema acabariam assim, através de uma abordagem teórica e estruturada, por dar forma a um sistema rigoroso e uniforme, mas capaz de ser influenciado pelo que filma. Esta estética acabaria por influenciar o cinema fora do género documental, estendendo-se até aos filmes de Hollywood e à linguagem televisiva contemporânea.

O método de Wiseman envolvia um estudo prévio escasso sobre o tema proposto, de modo a não carregar ideias pré-concebidas, seguido de um longo período de filmagem, de várias semanas, junto dos locais que decide examinar. Wiseman percebia que apesar da abordagem minimal durante a filmagem, não apresenta uma visão neutra, mas antes o resultado subjectivo da sua observação. Esta subjectividade é revelada na escolha do tema e mesmo durante a filmagem, na escolha do que era filmado dentro do plano e de como este era filmado, durante quanto tempo, e para onde decidia apontar a câmara. Mas a subjectividade era visível sobretudo na edição dos filmes. Wiseman trabalhava as várias horas que tinha registado para criar uma narrativa dentro do filme, apelando a construções subjectivas, para definir as personagens principais. Estas funcionariam como guias de empatia, para o espectador formar o seu próprio quadro da realidade através do que via nas imagens. Wiseman consegue assim criar empatia com as personagens anónimas do filme, porque mostram-se parecidas com os espectadores anónimos do filme.

High School faz parte de um conjunto de filmes que marcaram o início de carreira de Wiseman e ajudaram a definir a sua abordagem, quer no plano visual quer no plano teórico. Se no plano visual é importante a estética da câmara ao ombro, disfarçada de observador contínuo, imparcial e quase voyeur, é a escolha do tema que permite perceber uma primeira impressão do realizador sobre o filme. Wiseman escolhe para estes filmes um conjunto de instituições americanas que simbolizam e encerram em si uma ordem própria, de modo a comentar sobre o seu papel como organização autoritária e reformadora.

Em Titicut Follies (1967), Wiseman debruça-se sobre o quotidiano num hospital psiquiátrico, registando as tentativas para normalizar os seus ocupantes, enquanto estes procuram sobreviver a diagnósticos e a sentimentos de alienação e esquecimento. É um quadro violento, quer pela brutalidade das imagens registadas da desumanização dos pacientes, quer pelo registo seco e sem narração ou contexto além do que vemos – é a banalização da violência. Em Law and Order (1969), segue de perto o trabalho da força policial local, revelando mais uma vez as tentativas por parte da autoridade em controlar uma parte da população; Hospital (1970), Basic Training (1971) e Juvenile Court (1973) continuam a tentativa de Wiseman de dar visibilidade às pessoas anónimas destas diferentes instituições, comentando as relações de poder entre eles. Há a necessidade de individualizar as pessoas anónimas, dar-lhes voz e atenção, e investigar o papel formativo de quem detém o poder – os médicos, os professores, os polícias, os agentes do estado.

Em High School, Wiseman consegue apurar o seu sentido de observação ao mesmo tempo que descobre uma linha narrativa adequada à sua visão política do funcionamento da escola como organismo formador de alunos homogéneos, de pensamento único. High School é portanto importante para perceber a desconstrução metódica que Wiseman faz sobre o tema escolhido. Através de uma série de sequências do quotidiano escolar, que revelam a organização hierárquica do poder na interacção entre professores e alunos, Wiseman vai construindo um quadro que permite questionar o funcionamento do sistema.

Dia após dia, mostra como é incutida aos alunos a necessidade de respeito pela autoridade para o bom funcionamento da sociedade, do que são comportamentos correctos e menos correctos, quais os papéis aceitáveis de cada sexo – exemplos que são símbolos de uma ordem retrógrada – quem não conformar-se à norma é ameaçado de exclusão e isolamento pela sociedade. Desta forma, Wiseman estabelece uma crítica à escola como uma instituição anacrónica, parada no tempo e hermética, numa altura de grande convulsão social. A crítica estende-se aos agentes que exercem a autoridade, pela forma como utilizam a responsabilidade que lhes é concedida.

Várias sequências ilustram a crítica de Wiseman apenas pela simples exposição do que observa, desde o que deverá ser a interpretação correcta de um poema, ou aulas de educação sexual separadas por género, onde fica claro o comportamento responsável que é esperado das raparigas perante a irresponsabilidade aceitável dos rapazes. Há também uma história de um rapaz condenado a um castigo sem ter feito nada, como que perdido no castelo kafkiano das regras da escola, que quando tenta explicar a sua inocência esbarra na necessidade de aceitar o que lhe é dito sem protestar. Mas é a cena final que melhor exemplifica o que Wiseman procura evidenciar. Num auditório cheio, uma professora lê com emoção uma carta de um antigo aluno da escola, acabado de ser destacado para o Vietname, orgulhoso dos valores aprendidos e em seguir ordens para defender o país – apenas um corpo a fazer um trabalho, diz ele – e a professora concluí que isto é a maior prova do sucesso do modelo da escola: Wiseman não mais tem a dizer.

Angel (1937)

Angel

Angel (1937) de Ernst Lubitsch
o texto sobre o filme pode ser lido no ÀpaladeWalsh

outubro 03, 2013

Junkie Awards 2012

os melhores filmes de 2012, na 15ª edição Junkie Awards.

menções honrosas:
Shame de Steve McQueen, Reino Unido
We Need to Talk About Kevin de Lynne Ramsay, EUA/Reino Unido
The Future de Miranda July, EUA
Bonsái de Cristián Jiménez, Chile
Holy Motors de Leos Carax, França

Kiseki
10. Kiseki de Hirokazu Koreeda, Japão

Filme herdeiro de Dare mo shiranai (Ninguém Sabe, 2004) na forma como aborda a desintegração da família nuclear (ou antes, da normalização da sua fragmentação), continua a preocupação japonesa em olhar esse mundo desfeito através dos mais novos. No entanto, o vazio emocional é aqui preenchido por uma multitude de detalhes visuais, contrastando com os silêncios desesperados de Dare mo shiranai,  e por consequência, substituindo o lamento da perda de inocência com esperança na imaginação como escape. É porventura um Koreeda mais optimista, mesmo que momentaneamente.

Le Havre
9. Le Havre de Aki Kaurismäki, Finlândia

Kaurismaki disse certo dia que com cada novo filme que faz tenta fazer algo próximo do cinema de Ozu, mas que sabe que nunca chegará perto. Com este retrato de uma pequena comunidade portuária, que une-se para dar abrigo a um jovem emigrante perdido num país estranho, Kaurismaki atinge pelo menos muitos dos elementos dos filmes de Ozu. A unidade formal e um cuidado de enquadramento aliam-se a uma história agridoce, dividida entre a relação entre o rapaz imigrante e o velho que o ajuda, e a relação deste com a sua mulher, que entretanto se refugia num hospital para morrer. Ao estabelecer uma fórmula base, para depois dar espaço aos personagens e à história para crescerem na atenção do espectador, Le Havre acaba por não mais o abandonar.

Take Shelter
8. Take Shelter de Jeff Nichols, EUA

Há uma epidemia na América que está a infectar o seu cinema independente: o medo de perder a cabeça. Um retrato feroz da espiral depressiva em que entra um homem, é um sintoma do mau tempo que assola a América, assombrada pelos seus receios. Um afluente thriller psicológico que se resolve na cabeça da personagem principal, onde o maior mérito do filme é exactamente colocar-nos na sua pele, levar-nos a duvidar da realidade que ali é construída. Na dualidade entre acreditar se aquilo pode realmente acontecer ou se é apenas uma fabricação perigosa da mente, em que uma premonição para ser verdadeira exige fé, estabelece-se um paralelo com a religião. Mas é quando Nichols consegue conviver num simples plano de campo/contra-campo a insanidade e a lucidez, que o filme se torna notável na sua paranóia.

Wuthering Heights
7. Wuthering Heights de Andrea Arnold, Reino Unido

Andrea Arnold consegue aqui uma abordagem refrescante a material bem conhecido (nono filme sobre o livro), através da infusão de uma sensibilidade sensorial e intimista à história. Num estilo por vezes reminiscente do cinema de Malick, o resultado é uma aproximação à capacidade descritiva da literatura, do encanto em deter-se em pequenos pormenores, como o sussurro do vento ou o ocaso provocado pelo nevoeiro, contagiando os actores com os elementos naturais à sua volta. A recorrente explosão calma de impulsos visuais é desorientadora, mas no bom sentido, imitando a convulsão sentida pelas personagens. Os desencontros têm assim mais encanto.

Martha Marcy May Marlene
6. Martha Marcy May Marlene de Sean Durkin, EUA

Sean Durkin é o colega de Antonio Campos na produtora que nos ofereceu Afterschool, e se há uma nova linguagem no cinema americano, é nos filmes destes dois que tem ganho espaço para gestar. Com este filme, Durkin parece infectado pelo mesmo tema de Take Shelter, que desta vez é pintado através de uma rapariga foragida de um culto, que não consegue ter a certeza se o chão que pisa é seguro. Alternando entre sequências do tempo que passou numa comunidade rendida a um líder obscuro, e a sua recepção junto da própria família que não acredita na sua capacidade de recuperação, consegue navegar entre um surrealismo que nasce da quietude cénica e uma tensão constante que nasce da falta de contexto.

Oslo, 31. august
5. Oslo, 31. august de Joachim Trier, Noruega

Depois de um período longo de ausência após o aclamado Reprise, Trier retoma aqui o imaginário das personagens tombadas pelo seu destino. Se desta vez a escala é menos ambiciosa, ao filmar um último dia de verão em Oslo, permite ao mesmo tempo o gesto de um registo intimista e anestesiado. Desde o início, que mostra a tentativa de suicídio da personagem principal, depois deste aparecer em frente a uma janela como um fantasma, que Trier estabelece que este é um filme sobre alguém em desvanecimento, ou perigosamente próximo disso. O que se segue é um período de convalescença, à procura da esperança.

Tabu
4. Tabu de Miguel Gomes, Portugal

Parte filme mudo sobre um romance trágico numa África fantasmagórica, parte filme moderno sobre uma Lisboa de saudades, Tabu revela uma ambição intemporal. A teatralidade dos gestos despidos de palavras nos momentos sem diálogos, embalada por uma narração melancólica, ajuda a compor uma mitologia própria, numa terra imaginada mas não tão distante. Por contraste, a lentidão soturna na fase descendente da história filmada em Lisboa, revela uma expressividade reprimida, que reforça o sentimento de perda, e ao mesmo tempo o alcance na memória do que aconteceu antes.

Amour
3. Amour de Michael Haneke, Áustria/França

Amour mostra que apesar de Haneke ser frequentemente acusado de cinismo e calculismo nas suas abordagens, não falta humanismo no seu cinema. Este filme sobre os últimos tempos da vida de um casal, prova que a Haneke interessa também a luz da esperança que ilumina o espírito humano, mesmo que aqui sejam luzes de desvanecimento. Se a música é significante de conforto, não admira que aqui seja sempre interrompida - não há descanso em relação à realidade, não se pode desviar o olhar. Se o filme respira através das interpretações de outro mundo de Jean-Louis Trintignant e Emmanuelle Riva, é a encenação de Haneke que providencia uma chamada de inevitabilidade e empatia em relação às personagens. É impossível não fazer a ligação com o espectador, não ver no filme a vida que teima em fugir, e nos olhares, um espelho trágico.

A torinói ló
2. A torinói ló (O Cavalo de Turim) de Béla Tarr, Hungria

Reza a história que Nietzsche, certo dia, parou na rua para insurgir-se contra um homem que espancava um cavalo, colocando-se à frente do animal para o defender - no dia seguinte, cairia doente numa cama, para não voltar a falar. É a partir deste ponto de partida que Tarr constrói um lento fade out, um tratado destinado a alertar a humanidade sobre o perigo de cair na escuridão. Um filme-gesto, militante na forma como expande as suas ideias através de um longa analogia, que vive da repetição de gestos cada vez mais sem sentido, é também um filme-testamento da obra de Tarr. Inflexível, inamovível, mostra a peso insuportável da passagem do tempo como nenhum outro filme. [crítica completa aqui]

Bir zamanlar Anadolu'da
1. Bir zamanlar Anadolu'da (Era Uma Vez na Anatólia) de Nuri Bilge Ceylan, Turquia

O filme, que acompanha uma viagem pelo interior esquecido da Turquia na tentativa de solucionar um crime, é no fundo um  pretexto para um exercício existencialista. A dissecação da natureza humana que se segue, aliada a um ritmo lento, propício a divagações paralelas e introspecção onde, tal como o filme, nada parece ser possível solucionar, encontra no filme o espaço necessário. O vazio das personagens que se deslinda lentamente com pequenos gestos, é preenchido pela vastidão dos cenários que se repetem também sem fim à vista. A fotografia, e acima de tudo a iluminação e a falta dela, delimitam o que é possível pressentir. É no encoberto, no que se esconde imediatamente fora da luz, que se evoca a escuridão omnipresente. E no fim, a única ambição é fugir.

julho 23, 2013

Kikujirô no natsu (1999)

Kikujirô no natsu

Kikujirô no natsu (O Verão de Kikujiro, 1999) de Takeshi Kitano

o texto sobre o filme pode ser lido no ÀPaladeWalsh

Festival Curtas Vila do Conde 2013

Gambozinos

a minha cobertura do festival para o ÀPaladeWalsh pode ser lida aqui:

primeiros dias
da escama do dragão aos gambozinos imaginários
conclusão

junho 11, 2013

Lilith (1964) de Robert Rossen


Lilith (1964) de Robert Rossen

o texto sobre o filme pode ser lido no ÀPaladeWalsh

junho 03, 2013

Um Adeus Português (1985)


Um Adeus Português (1985) de João Botelho

o texto sobre o filme, onde se fala de Tabu e Ozu, pode ser lido no ÀPaladeWalsh

abril 10, 2013

Jagten - The Hunt (2012)

Jagten

Jagten (A Caça) de Thomas Vinterberg, Dinamarca 2012, 9/10

No filme de 1960, Jungfrukällan (A Fonte da Virgem), de Ingmar Bergman, uma família depois de perceber que os estranhos a quem deram guarida na sua casa são os mesmos que antes tinham violada a filha mais nova, acaba por exercer uma vingança violenta sobre os intrusos, pondo em prática a sua própria justiça. Esse filme ilustra uma certa moralidade nórdica, em que uma civilidade exemplar é corrompida por um comportamento vingativo de carácter religioso, em relação ao que julgam um ataque à tranquilidade e aos alicerces do seu modo de vida - não olhes ao que eu faço mas antes para o que eu digo. Este é um sentimento que está sempre presente em Jagten, e é transversal a vários filmes escandinavos, exposto quer por Bergman ou presente na psicologia dos filmes de Lars von Trier. É algo a que Vinterberg já tinha aludido em Festen, o seu filme de 1998, quando perante uma sala de jantar repleta de convidados, o filho anuncia que em criança foi abusado sexualmente pelo pai aniversariante - ninguém sabe bem como reagir, mas o silêncio revela o desconforto pela ruptura com a normalidade, preferindo ignorar o que ouviram, à espera que tudo seja esquecido. Em Jagten, a influência religiosa é ainda mais acentuada, quando na pequena comunidade onde decorre a acção do filme, a modernidade convive com a religião, e se toda a aldeia está presente na missa de Natal, é porque a igreja é o local onde decorre a cena chave do filme, onde a condenação convive com a expiação.

Jagten começa por mostrar o quotidiano da personagem principal, Lucas, um professor de infantário, para quem as coisas começam lentamente a correr bem depois de terem corrido mal, antes de começarem a correr pior. Recém-divorciado e no meio de uma luta de custódia pelo filho, Lucas parece contente com o seu emprego, com a sua integração na comunidade e pelo apoio dos seus amigos, e até envolvido num romance promissor com uma colega de trabalho. Mas uma sequência de eventos, que Vinterberg ilustra cuidadosamente a diferentes níveis, de modo a estabelecer desde logo as escolhas que se seguem, vai abalar a vida de Lucas, quando uma criança do infantário o acusa de abusos sexuais. Uma das virtudes do filme é o facto de não deixar dúvidas em relação ao que aconteceu, eliminando a ambiguidade simples para explorar a complexidade de terrenos mais pantanosos. A partir da denúncia tudo complica-se, em grande parte pelo modo como a directora do infantário tenta resolver o que aconteceu, e as pessoas próximas de Lucas começam a abandona-lo. É o início de um longo processo de deserção violenta pela comunidade, que prefere a solução mais imediata para o problema, mais correctiva, como se fosse necessário estancar qualquer possível contágio.

O filme, que tinha começado com um ritual de grupo, um mergulho alegre de um bando de amigos num lado gelado, acaba com uma caça, outro evento de grupo, que aqui ilustra o estilhaço da comunidade, transformando-se num momento de total solidão e abandono. O mergulho inicial é um de vários eventos comunitários, de convívio de grupo, a que assistimos ao longo do filme, como o ritual de bebida e cânticos entre amigos ou a própria caça, rituais inclusivos em que ninguém pode-deve ficar de fora, sob a suspeita de ser olhado de lado, de passar por diferente - e Lucas contenta-se em ser parte participativa. Jagten debruça-se sobre como a mentalidade de grupo actua, e como esta é inerente ao comportamento religioso, à necessidade de julgar os outros pela sua conduta. A procura de qualquer desvio-traição em relação à comunidade afigura-se como uma necessidade de sobrevivência, um processo de caça mental. The Idiots de Trier construía-se à volta de um grupo de pessoas que se tentavam afastar do comportamento considerado aceitável e que acabam castigadas por isso. Em Festen, o filho depois da denúncia é agredido e abandonado por membros da família, castigado por quebrar a ordem, enquanto um convidado negro tem que suportar uma sala embriagada em cantigas racistas - é o desfazer das aparências civis. Agora Vinterberg mergulha numa escuridão ainda mais profunda, ilustrada pela cena onde o filho de Lucas é agredido por antigos amigos do pai, ruindo não só a fachada social de civilidade, mas os próprios fundamentos da sociedade onde tal é possível acontecer. No final continua a existir debaixo da superfície o tal sentimento de dualidade, entre a falsa paz social e a fragilidade do tecido comunitário. Se tudo parecia resolvido, Lucas não consegue esquecer as cicatrizes, porque há feridas que cortam demasiado fundo.

Little Dieter Needs to Fly (1997)

Little Dieter Needs to Fly

Little Dieter Needs to Fly (1997) de Werner Herzog

o texto sobre o filme pode ser lido no À Pala de Walsh.

março 25, 2013

Shadows (1959)

Shadows

Shadows (Sombras, 1959) de John Cassavetes

o texto sobre o filme pode ser lido no À Pala de Walsh

março 01, 2013

Ossessione (1943)

Ossessione

Ossessione (Obsessão, 1943) de Luchino Visconti

o texto sobre o filme pode ser lido no À Pala de Walsh

fevereiro 21, 2013

5 Broken Cameras (2011)

5 Broken Cameras

5 Broken Cameras de Emad Burnat e Guy Davidi, Palestina 2011, 9/10
nomeado para Oscar Melhor Documentário 2013

É desarmante, neste filme, a esperança que alguém carrega, na ideia de fazer a diferença apenas ao pegar numa câmara. 5 Broken Cameras podia ser apenas uma história simples. Um pai que se dedica a registar os primeiros passos dos seus filhos, e gravar o quotidiano à sua volta para memória futura, seria normal - não fosse o caso desta família viver em Bil'in, uma pequena aldeia palestiniana, perto da fronteira com Israel. Emad, realizador, cameraman e técnico de som, é a alma deste filme. A consciência do filme pertence a Guy Davidi, responsável pela edição e texto do filme, que descobriu Emad, e as horas de filmagens que este tinha gravado, numa visita a Bil'in. Depois de analisar as imagens, Davidi encontrou uma narrativa que ligava intimamente os acontecimentos nesta vila com a vida de Emad, dirigindo o filme nesse sentido e dotando-o de um voice-over sóbrio, revelador do efeito desgastante que o conflito tem sobre os que lhe são próximos.

As câmaras de Emad contam várias histórias e todas contêm um drama próprio. Mas Emad não é só a pessoa por trás da câmara, é a pessoa por trás da câmara quando esta é destruída por um colono israelita, ou por uma bala disparada por um soldado israelita. A metáfora não podia ser mais evidente: é a câmara que salva a vida de Emad, não só ao agir como um escudo que o protege, mas como uma entidade através da qual ele consegue resgatar a violência e o desespero do quotidiano para o filme, para que ausentes, como nós, se tornem, também, testemunhas. Emad constrói, desta forma, um documento vital de uma realidade esquecida pelo resto do mundo, cansado de um conflito que parece não ter fim.

Ao capturar os eventos que assistimos durante o filme, Emad não está só a garantir a importância da recusa em desistir de um povo, ao assegurar a sobrevivência da memória destas pessoas, mas também a dar sentido à sua própria existência, da única forma que conhece. Não raras vezes é a própria câmara que coloca Emad em perigo ou é a causa directa dos seus problemas: é agredido por causa dela, disparam sobre si, é preso, interrogado e forçado ao isolamento pelas autoridades israelitas, desconfiadas da sua câmara. A nível pessoal, causa-lhe dificuldades no casamento pela insegurança que o trabalho envolve, no relacionamento com outras pessoas que não vêem validação no seu trabalho, que confundem a sua persistência com obstinação inútil. São inevitáveis as dúvidas de Emad em relação a si mesmo, mas os seus companheiros de luta não desistem dele, oferecem-lhe novas câmaras quando alguma é destruída. Se é desolador verificar as mudanças na paisagem natural, que o avanço dos colonatos provoca nos arredores da vila outrora limpos de muros artificiais, é encorajador, pelo menos para Emad, verificar o número crescente de câmaras nos protestos semanais contra os israelitas.

Este é um filme que dispensa gráficos e mapas e entrevistas com políticos, tal é o poder das suas imagens.
Dedicados a um protesto pacifico contra o avanço dos colonatos e o roubo da sua terra, Emad e o seu grupo de amigos vêem-se perdidos numa série de jogos kafkanianos com as autoridades israelitas: tentando que as mesmas leis que se aplicam aos colonatos se apliquem a eles, procuram contornar as ordens israelitas. Apesar das intenções pacifistas, a brutal resposta israelita não deixa hipóteses: o olhar que a câmara de Emad recebe de volta dos seus filhos, a violência que cresce nos seus olhos como resposta à agressão israelita, encontra apenas resposta no desamparo de Emad - uma das primeiras palavras que o seu mais novo aprende é cartucho. Com o quotidiano registado em 5 Broken Cameras ficamos a conhecer as personagens da vila, as pessoas mais próximas do realizador, que tornam-se a sua família imediata através do companheirismo da resistência. Várias dessas pessoas são presas, outras são agredidas e pelo menos uma é assassinada - muitos sucumbem à pressão exercida por um autoritarismo absurdo. Numa das poucas visitas a Israel concedidas a Emad, por ocasião de uma deslocação a um hospital para tratar um ferimento, assistimos a cenas desoladoras, pela sua beleza simples: os seus filhos deliciam-se pela primeira vez com a praia, que está tão perto mas tão longe. Acima de tudo, a passagem do tempo é implacável, e a procura de qualquer esperança frágil. Mas este filme é também uma prova de resistência, que sobrevive através do seu visionamento.

Kon-Tiki (2012)

Kon-Tiki

Kon-Tiki de Joachim Rønning e Espen Sandberg, Noruega 2012, 5/10
nomeado para Oscar Melhor Filme Estrangeiro 2013

Este é um filme que retrata um feito extraordinário de forma frívola. O acontecimento é a travessia do oceano pacífico a bordo de uma jangada conduzida apenas pelas correntes marítimas, para provar que os ascendentes dos povos das ilhas polinésias provinham da América do sul. É uma teoria sem crédito em 1947, altura em que decorre a acção do filme, e por consequência esta será uma expedição com poucos meios, apenas possível devido à perseverança obstinada do seu líder, a personagem central do filme. É através desta personagem, Thor Heyerdahl, que o filme expõe a sua carta de intenções e constrói o seu arco narrativo, delimitando o género a que aspira - um simples filme de aventuras, sem grandes divagações filosóficas.

Thor é uma figura intrigante, perigosamente egoísta e inabalável na sua procura de validação, no que pode ser entendido como uma forte necessidade de aceitação. Seria interessante investigar o que motiva as outras personagens a acompanhar Thor nesta missão arriscada, mas o filme nunca o faz, apenas apresentando estas personagens prontas a embarcar, num discurso de poucos minutos. Um dos problemas do filme é que não há grandes explicações científicas para a teoria de Thor, antes uma convicção quase religiosa, baseada numa visita à Polinésia anos antes. O primeiro acto do filme arrasta-se como um longo prólogo, durante largos períodos de exposição da história, para tentar contextualizar a necessidade de Thor em arriscar tudo neste seu acto de fé. É especialmente nesta parte que a dupla de realizadores (responsáveis por exemplo pelo veículo Penélope Cruz/Salma Hayek Bandidas) banaliza a história, recorrendo a clichés e soluções de encenação rotineiras, como os flashbacks da infância de Thor ou da sua primeira viagem à Polinésia, aludindo à escolha posterior entre abandonar a sua companheira em terra ou prosseguir a expedição. Mais uma vez não há realmente uma resposta para a sua escolha, que é ilustrada apenas pelo silêncio de uma chamada telefónica que cai.

O minimalismo inerente à ideia de filmar uma viagem num barco à deriva durante várias semanas poderia ser cativante, tal como a escolha para ilustrar a deterioração mental dos seus viajantes. O cenário reduzido e repetitivo, a falta de interacção com o exterior, o silêncio e o abandono aos elementos naturais poderiam acentuar o isolamento, as dúvidas, levar à contemplação interna. Mas em vez de oferecer espaço e tempo para pensar nas implicações de tal isolamento, através do desgaste nas expressões dos actores, a opção é precisamente o inverso do minimalismo. Escolhendo externalizar os problemas internos de foro psicológico em imagens, com alusões a alucinações, rapidamente torna-se necessário exemplificar o desgaste da viagem em comportamentos irracionais que se tornam quase cómicos. O problema da compressão de tempo no filme, durante a fase mais tensa, leva a que as personagens ainda em formação comecem a agir sem nexo, complicando a ligação emocional do espectador ao filme.

fevereiro 19, 2013

En Kongelig Affære (2012)

A Royal Affair

En Kongelig Affære / A Royal Affair (Um Caso Real), de Nikolaj Arcel, Dinamarca 2012, 4/10
nomeado para Oscar Melhor Filme Estrangeiro 2013

En Kongelig Affære é um drama de época, com aspirações a proporções épicas, respeitando a tradição do género. Um filme eficiente, baseado numa história envolvente, que, contada de forma relativamente directa, alcança o que propõe, aproximando-se da acessibilidade de um filme de Hollywood. Apesar de procurar incutir um toque europeu - menor pudor e uma particularmente irrequieta câmara steadicam ao ombro - nunca vai além de um formato convencional, visto e revisto, nunca arriscando a ser realmente original. A história, baseada em factos verdadeiros, tem o potencial para prender a atenção do espectador, mas o filme nunca é capaz de explanar as suas diferentes complicações, sem se atrapalhar com pormenores e sem aborrecer com os seus procedimentos.

Uma princesa inglesa é enviada muito nova para a Dinamarca a fim de casar com o rei, que sofre de perturbações mentais. O rei, uma personagem complicada, que alterna entre a alienação e o hedonismo infantil, é, na verdade, uma figura de decoração, controlado pela corte. Um médico estrangeiro, desconhecido, é chamado para ajudar o rei, e apesar das suas posições ideológicas contra tudo que a realeza representa, consegue cair nas suas graças. Através da sua aproximação ao Rei, e aproveitando o alheamento total deste em relação à realidade, procura influenciar as políticas do reino. Incitando o rei a assumir a responsabilidade do seu papel, o médico acaba por substituir-se à corte como o controlador do fantoche. Aproxima-se também da tal princesa inglesa, agora rainha da Dinamarca, abrindo a porta a um possível romance desastroso para os três. Será no desenrolar da relação entre o médico e a rainha que o filme aposta a sua resolução.

Nikolaj Arcel tem no currículo o crédito de co-argumentista de The Girl with the Dragon Tattoo (o original sueco), e alguns filmes de género como realizador (um thriller político, uma aventura juvenil, um romance). Em En Kongelig Affære o realizador preocupa-se em manter o interesse do espectador, o que, na sua opinião, significa não permitir espaço para grandes considerações, oferecendo todas as soluções imediatamente. Apesar do potencial para uma história cativante e subversiva do género (pelas ideias revolucionárias da época que retrata), En Kongelig Affære leva-se demasiado a sério. É demasiado didático, ostentativo na sua pomposidade, seguidor de uma fórmula gasta e enamorado das possibilidades da recriação histórica. As personagens uni-dimensionais são simplificadas para avançar rapidamente a trama, em que não faltam os vilões de várias cores, e as personagens que agem sem grandes explicações, porque afinal, são maus vilões. Quando se filma todas as cenas de forma igual, torna-se difícil incutir especial importância a determinadas sequências. Ao escolher filmar a luta entre ideais novos e a preservação do status quo, Nikolaj Arcel coloca-se do lado do conservadorismo.

fevereiro 05, 2013

The Third Man (1949)

The Third Man

The Third Man de Carol Reed, 1949 Reino Unido, 9/10

o texto sobre o filme pode ser lido no À Pala de Walsh

janeiro 24, 2013

Antonio Gaudí (1985)


Antonio Gaudí

Antonio Gaudí de Hiroshi Teshigahara, Japão 1985, 8/10

“[documentary was] the presentation of the subject construed and perceived through
particular human eyes” – Teshigahara

Hiroshi Teshigahara (1927‐2001) destacou‐se na década de 60 como um dos mais originais e visionários cineastas japoneses, com filmes como Pitfall (1962), Suna no onna (Woman in the Dunes, 1964 – prémio do júri no Festival de Cannes) e Tanin no kao (The Face of Another, 1966 – nomeado para Oscar de Melhor Filme Estrangeiro), exemplos de inovação e modernismo. Formado pela Universidade de Tóquio em Belas Artes e Música, pintor, escultor e director de teatro, Teshigahara teve sempre como preocupação uma abordagem vanguardista, dando primazia à procura de imagens icónicas que proporcionassem a construção de um ambiente único.

Teshigahara começou a sua carreira a filmar documentários, mas além de dois documentários pouco conhecidos, realizados na década de 60, Jose Torres II (1965) – sobre um pugilista americano, e Bakuso (Explosion Course, 1967), este filme sobre Gaudí pode parecer um corpo estranho na filmografia de Teshigahara, dada a sua propensão para explorar o campo da ficção, e o reconhecimento que obteve nesse campo. Mas vários factores podem ajudar a explicar este fascínio de Teshigahara pela obra de Gaudí, e a decisão em dedicar‐lhe um documentário: a sua formação em Belas Artes, o seu interesse pelo meio ambiente e pela natureza das estruturas como organismos com influência sobre o Homem, e uma visita a
Barcelona nos anos 60 com o pai. Se as obras de Teshigahara sempre revelaram uma abordagem imaginativa e subjectiva a nível de composição plástica e tratamento das imagens, com Antonio Gaudí, Teshigahara vai tentar uma nova resolução da problemática do cinema em filmar obras de arte.

A questão da arte filmada pelo cinema está ligada à própria história do cinema ao longo do século XX. Inúmeros filmes dedicaram‐se a este tema, e como resultado são variadas as abordagens. Um dos primeiros exemplos é Van Gogh (1948) de Alan Resnais, uma engenhosa curta‐metragem que utiliza somente os quadros do artista para contar a história da sua vida. Acrescido de uma narração em voz‐off e de movimentos de câmara dentro do quadro, que ora chamam a atenção sobre detalhes, ora acrescem movimento a uma imagem parada, o filme de Resnais representa a visão subjectiva do realizador sobre a obra do artista retratado. Outro filme de Resnais que tenta capturar as possibilidades cénicas de um quadro é Guernica (1950). Através de uma série de imagens fragmentadas, Resnais compartimenta a obra de Pablo Picasso, oferecendo uma nova interpretação do quadro, recorrendo também a uma narração por cima das imagens, que aliada a uma edição rápida, apresenta uma visão próxima do cubismo do quadro. Um outro exemplo é Le mystère Picasso (1956), de Henri‐Georges Clouzot, que denota uma escolha diferente da apresentada por Resnais. Aqui, a presença da câmara é meramente presencial, testemunhal, já que Clouzot oferece, como modelo de estudo da arte, uma série de quadros pintados por Picasso em tempo real, recorrendo a uma inovação técnica que permite ver os traços de Picasso através da tela. Um exemplo mais recente é Cave of Forgotten Dreams (2010) de Werner Herzog, que faz uso da tecnologia mais recente (3D), para apresentar uma visão de arte outrora inacessível, tal como Pina (2011) de Wim Wenders, que consegue dessa forma extravasar o meio onde a arte era apresentada. Um caso recente de originalidade sobre este tema é Exit Through the Gift Shop (2010) de Banksy, que incorpora o espirito punk da street art, na forma como subverte as regras de um documentário tradicional sobre arte.

Alguns filmes portugueses também abordaram esta questão e Manoel de Oliveira seria responsável por dois deles: O Pintor e a Cidade (1956) e As Pinturas do Meu Irmão Júlio (1965). Em O Pintor e a Cidade, documentário sobre a cidade do Porto através das aguarelas do pintor António Cruz, Oliveira filma o pintor à medida que este percorre a cidade, alternando essas imagens com quadros do artista, em que o som se desloca pelos dois planos. Em As Pinturas do Meu Irmão Júlio, sobre o pintor Júlio dos Reis Pereira, Oliveira movimenta a câmara no interior dos seus quadros e movimenta os próprios quadros, criando um efeito hipnótico sublinhado pela guitarra de Carlos Paredes e um texto de José Régio – o resultado é uma obra altamente subjectiva que traça os seus próprios caminhos dentro dos quadros. Sophia de Mello Breyner Andresen (1969), de João César Monteiro, é uma homenagem em forma de filme‐poema, sobre alguns dias do quotidiano familiar da escritora. Jaime (1974), de António Reis e Margarida Cordeiro, sobre o artista Jaime Fernandes, relaciona de forma pouco convencional a biografia do pintor à sua obra plástica, ela própria pouco convencional. Por outro lado, Fernando Lanhas ‐ Os 7 Rostos (1988), de António de Macedo, analisa a obra do artista principalmente através de entrevistas‐depoimentos de outros artistas contemporâneos. Mais recente é Ne change rien (2009), de Pedro Costa, um retrato intimista da cantora‐actriz Jeanne Balibar, que através de jogos de repetições rítmicas e planos estáticos recorrentes, arrasta‐nos para uma imersão sensorial dedicada à contemplação.

Teshigahara acreditava na comunicação e interdisciplinaridade entre diferentes formas de arte, e esse princípio seria fundamental no seu contributo para uma proposta de resolução do problema de como um cineasta deveria apresentar o trabalho de outro artista. 

Antonio Gaudí é um filme‐ensaio, mas não no sentido delineado como em alguns filmes de Chris Marker (Description d'un combat, Sans Soleil), em que uma narração dá corpo a um texto que é enunciado sobre uma série de imagens que procuram ilustrar o tema abordado, com maior ou menos sincronia com as imagens. Aqui não há qualquer narração nem títulos‐texto, portanto não há contextualização. O único comentário que existe é apenas providenciado pelos movimentos de câmara de Teshigahara e pela hierarquia da montagem das imagens que procuram revelar um olhar próprio sobre o material. Antonio Gaudí é então um filme‐ensaio no sentido em que é um conjunto de imagens que estão subjugadas a um conceito central, que é evidenciado pela forma como o espectador é dirigido a compreender um olhar particular. Partindo da exploração das obras de Gaudí, Teshigahara consegue chegar a uma visão original recorrendo a uma conjugação de vários elementos. Primeiro, as imagens capturadas em Barcelona são o principal suporte do filme, são efectivamente os alicerces do documentário. Teshigahara desenvolveu um método através do qual analisa as diferentes obras de Gaudí, que se mantém relativamente uniforme durante o filme. Segundo, o filme não tem qualquer diálogo ou narração (excepto um pouco de história sobre a Sagrada Família, já na parte final do filme), mas utiliza dois elementos importantes a nível sonoro: os ruídos
capturados na rua, isto é, os sons naturais da cidade, e a música, que oscilando entre composições ocidentais e orientais, acrescentam uma camada complexa ao filme, ajudando a criar um ambiente tenso que joga com as figuras que são destacadas. 

Antonio Gaudí

Analisando uma sequência do filme, em particular, observamos como Teshigahara constrói o seu método de análise da obra de Gaudi. A sequência filmada no Parc Guell é ilustrativa das técnicas e forma que Teshigahara utiliza na descrição dentro do filme. Esta composição de vários elementos é aplicada noutros segmentos no filme, como por exemplo, na descrição imagética dedicada à La Pedrera ou à Sagrada Familia, com pequenas alterações, que passam pela utilização episódica de imagens de arquivo ou as plantas e desenhos de construção ou ainda no caso do segmento da Sagrada Familia, de uma pequena entrevista que detalha algumas das peculiaridades desta obra. Teshigahara começa sempre por mostrar primeiro as pessoas na rua (fig.1), quase que colocando a obra em segundo plano em relação às pessoas que habitam o espaço em volta da obra, o que revela como a própria obra se insere quase naturalisticamente na paisagem da cidade. Estabelece assim a envolvência da obra, mesmo antes de mostrar a própria obra, envolvência que também pode ser visível nas casas circundantes. Depois, numa série de planos (fig.2), começa a desembrulhar a obra, mostrando os seus traços gerais em separado, ou seja, pausando sobre partes da estrutura, quer sejam torres ou arcos ou salas, aproximando‐se dos detalhes. Numa série de movimentos de câmara repetitivos (mas nem sempre iguais) pela obra, arrasta o seu olhar por essas partes da estrutura (fig.3), traçando um rumo próprio que nem sempre é o mais óbvio mas que revela o olhar de Teshigahara na  forma como nos apresenta a obra. Através destes movimentos de câmara rítmicos e quase ritualísticos, Teshigahara encontra pormenores em que se detém, revelando figuras, quase sempre religiosas, que fazem parte da paisagem singular da obra. Desta forma, consegue dirigir o nosso olhar para a sua visão subjectiva dentro da obra de arquitectura que nos apresenta, efectivamente dando vida e movimento a algo estático, sugerindo movimento e continuidade dentro dessas estruturas, que parecem assim em infinita mutação. De notar que estes movimentos de câmara adaptam‐se à estrutura filmada: se, no caso da Sagrada Familia, constituem‐se de uma série de movimentos verticais, e, no caso da Colònia Guell, de movimentos em espiral mimetizando as colunas, no Parc Guell filma maioritariamente através de movimentos circulantes e horizontais. Por fim, apresenta uma série de planos gerais da obra, filmados de longe (fig. 4), que mostram como o meio ambiente em redor absorveu o trabalho de Gaudi como parte integrante da paisagem natural.

Esta visita íntima à obra de Gaudi, que resulta da conjugação entre o cinema e a arquitectura, pode não ser uma nova obra de arte como parece sugerir Dore Ashton no seu texto sobre o filme. Mas é o produto de uma visão de um artista multidisciplinar como Teshigahara, que consegue assim oferecer uma nova interpretação do que deverá ser um modelo de filme sobre a arte. E oferece acima de tudo uma forma única de experienciar, quer a obra de Gaudi, quer a visão de Teshigahara sobre essa obra.




alguns dos filmes mencionados podem ser vistos na integra nos links em baixo:
Van Gogh de Alan Resnais - vimeo
Guernica de Alan Resnais parte1 + parte2
O Pintor e a Cidade de Manoel de Oliveira  - youtube
As Pinturas do Meu Irmão Júlio de Manoel de Oliveira - youtube
Sophia de Mello Breyner Andresen de João Cesar Monteiro - youtube
Jaime de Antonio Reis e Margarida Cordeiro - youtube
Fernando Lanhas ‐ Os 7 Rostos de António de Macedo - youtube

janeiro 23, 2013

Searching for Sugar Man (2012)

Searching for Sugar Man

Searching for Sugar Man, de Malik Bendjelloul, EUA 2012, 6/10
nomeado para Oscar Melhor Documentário 2013

Sugar man met a false friend
On a lonely dusty road
Lost my heart when I found it
It had turned to dead black coal

Rodriguez é o nome do Sugar Man do título do filme, uma das poucas coisas que se sabe sobre este desaparecido músico americano. Além dos dois álbuns que deixou, gravados em 1970 e 1971, muito pouco é conhecido sobre a sua figura. Entre as histórias à volta do músico baseado em Detroit, que se pressupõe ter sido um sem-abrigo que percorria os bares de guitarra às costas, destaca-se o que é contado acerca da sua morte. Duas versões alimentam o mito: que terá suicidado-se em palco, depois de despejar gasolina sobre si mesmo, imolando-se no fim de um concerto, ou então que no fim desse último concerto, tocado de costas para a audiência como era seu hábito, terá puxado de um revolver e disparado sobre si mesmo. Estas  e outras histórias, contadas no início do filme, por diferentes pessoas que alegam ter visto Rodriguez ao vivo, ajudam a compor o retrato deste singer-songwriter. No fundo, as poucas pistas deixadas para trás, que podem ajudar a explicar quem foi este espírito fugaz, são essencialmente as canções que deixou para trás, cujas letras incidem sobre drogas, indigência e uma aparente depressão incurável. Repletas de desespero, jogam com as poucas fotografias herdadas das capas dos álbuns, que revelam uma figura envolta em mistério. Apesar do falhanço rotundo dos seus dois álbuns, Rodriguez é considerado pelos produtores que trabalharam de perto com ele em Motown como um dos músicos americanos mais talentosos de sempre - e falamos de produtores que trabalharam com Marvin Gaye, Stevie Wonder ou Peter Frampton. Se Rodriguez foi completamente esquecido na América, foi transformado em figura de culto numa África do Sul dominada pela censura. Os seus álbuns eram aí fruto proibido, trocados entre os jovens sul-africanos à procura de uma voz que enunciasse o que sentiam, e as suas músicas anti-establishment chegam a ser usadas como hinos para manifestações. Rodriguez é adoptado com uma espécie de Bob Dylan por essa geração sul-africana a tentar escapar do apartheid, o que valeu-lhe níveis de popularidade acima dos Rolling Stones.

Este é um documentário dentro do género musical, mas antes de ser um filme sobre Rodriguez é um filme sobre a procura de respostas em relação à sua figura, e sobre a influência que a música pode ter na vida de diferentes pessoas, como factor singular de libertação. Primeiro em Detroit, onde o realizador entrevista habitantes de uma cidade em ruínas, que revelam os vestígios da sua música sobre a população predominantemente de classe operária, onde restam ainda rumores acerca do destino de Rodriguez. Depois na África do Sul, acompanhando de perto dois dos maiores admiradores do músico (um jornalista e um coleccionador), à medida que estes procuram respostas para o enigma. Examinando exaustivamente as poucas pistas ainda disponíveis, partem numa investigação-expedição, vasculhando as letras e os créditos dos álbuns, à procura de sinais e de pessoas que possam ter conhecido Rodriguez. E a verdade é que à medida que vamos aprendendo mais acerca da pessoa, mais do que do músico, começa a desenhar-se um retrato de alguém fascinante na sua complexidade. Rodriguez, filho de um emigrante mexicano, parece nunca ter-se adaptado à realidade americana, mas ainda menos aos jogos do mundo da música. Apesar de todo o seu talento, passa ao lado de uma carreira com maior reconhecimento, mostrando que muitas vezes no universo comercial da música, isso não é suficiente: será também um símbolo da aleatoriedade com que se fabricam mitos e génios. O filme é composto por várias entrevistas, paisagens filmadas nos locais de interesse, excertos de música e imagens de arquivo. Não anda muito longe da linguagem televisiva (e das biografias musicais), mas permite assistir de perto ao papel redentor da música, da sua influência duradoura e a felicidade pura que traz a quem permite-se envolver pela mensagem da obra. Porém, paralelo a esta celebração do papel da música, há sempre presente uma desvirtuação da mensagem do filme, quer pela manipulação dos factos para garantir um maior suspense, quer pelo adorno em relação ao que realmente poderá ter acontecido.