junho 22, 2010

A Single Man

A Single Man de Tom Ford, EUA 2009, 6/10


No primeiro filme de Tom Ford o que interessa é a história, mas não tanto como é contada. Pode parecer um paradoxo que um filme de alguém tão ligado ao lado visual se destaque principalmente pelo conteúdo narrativo mas a escolha de Ford em adaptar o livro de Christopher Isherwood é o grande trunfo de “A Single Man”, além obviamente de Colin Firth e Julianne Moore. Através duma descrição fúnebre e construção sóbria somos apresentados a um professor de literatura que cada vez mais não consegue encontrar razões para se levantar da cama de manhã: depois da morte do seu amante num acidente de viação está a desaparecer aos poucos no seu luto como processo de despedida do mundo, sobrevivendo apenas nos rituais impecavelmente ponderados com que prepara o quotidiano que ainda o sustentam por um fio frágil num todo rito cerimonial que parece desenhado para afogar o ruído da sua mágoa, até ao ponto em que percebemos que está efectivamente a cortar amarras soltas para se suicidar. É nesta altura que como numa partida cruel da vida tudo começa a correr mal no seu desejo de se desligar do mundo, com pequenos vislumbres de esperança para o futuro como o cigarro partilhado com um aspirante a actor ou um jovem que desafia o seu desespero-derrotismo.

É portanto sob toda uma pesada carga dramática que o filme se desenrola mas que nas acções da personagem é mais sugerida do que explicita, com a personagem de Firth preocupada em manter aparências e pormenores de requinte sofisticado que perpetuem para o exterior que tudo corre bem, uma fachada intransponível que suporta um longo lamento interior que proporciona imagens-quadros fantasmagóricos como a praia à noite, o parque de estacionamento ou cenas no apartamento agora demasiado vazio e preenchido de memórias. Mas o tom minimalista da história acaba por ser atraiçoado por algumas escolhas de Ford, não contente em deixar o registo reservado da personagem e a performance low-key de Firth contagiar as composições. Se por momentos Ford é ultra-comedido na sua exposição visual, deixando as palavras e as reacções dos actores como encenadores primários, como em duas cenas exemplares - um único plano em que Firth recebe o trágico telefonema com a notícia do acidente, um momento de intimidade partilhado no sofá - noutros momentos recorre a artifícios deslocados que baralham o equilíbrio do filme como um slow-motion debaixo da chuva logo a seguir ao telefonema anterior, cortes rápidos e planos aproximados sobre um jogador de ténis, imagens repetidas de um corpo a flutuar debaixo de água, mecanismos utilizados para forçar simbologia sobre o filme... além de que a utilização do voice-over é sempre problemática, especialmente numa adaptação literária, remetendo para a narração sentimentos que o filme não consegue replicar visualmente sem a ajuda da voz. Se Ford é exímio no modo como consegue caracterizar uma personagem através de um par de óculos ou escolha de sapatos, é desapontante que sinta necessidade de compensar a contemplação com exposição visual. É precisamente pela determinação em manter uma consistência minimalista de acordo com a natureza do argumento mesmo em cenas de elevada tensão dramática que um filme como "Far from Heaven" de Todd Haynes consegue uma inquietação arrepiante, que aqui é apenas difusa.

junho 17, 2010

Somewhere, Sofia Coppola

Lebanon

Lebanon de Samuel Maoz, Israel 2009, 8/10
l'enfer, c'est les autres

É um filme-experiência claustrofóbico, de imersão sensória total na desorientação própria de um cenário estranho de uma guerra estranha. Durante noventa minutos somos captivos do filme dentro de um tanque israelita junto com os seus quatro habitantes nas primeiras horas da guerra do Líbano em 1982.

O filme visualmente funciona em duas dimensões: a dentro do tanque, espaço físico limitador como mecanismo de tensão, e fora do tanque, através apenas da mira telescópica operada por um dos soldados, como janela para os horrores proporcionados pelo avanço do tanque. Esta divisão visual não é estanque, e se a dimensão interior apenas oferece uma segurança ilusória é rapidamente contaminada pelo que se desenrola no exterior, que à medida que germina uma dessensibilização crescente, uma inevitabilidade do cerco da morte à sua volta, desperta um sentimento de auto-preservação e de procura de justificação de uma desresponsabilização pelo que acontece – a certo ponto a única preocupação é abandonar o posto, ser substituído ou abortar a missão, o que apenas funciona para aumentar a pressão emocional cada vez que isso não sucede.

Mais do que uma qualquer ruminação como procura de sentido profundo sobre a psicologia dos soldados, o filme funciona melhor como pequena alegoria da situação extrema de guerra retratada como representativo da reacção humana frente a adversidade, numa abordagem de âmbito existencialista, numa ligação entre os actos de cada um e das suas consequências, da escolha ou falta dela como consideração reveladora da verdadeira natureza humana - isto é atingido através do retrato seco dos acontecimentos e na exasperação visível no rosto suado e chamuscado dos soldados, perdidos num estado de transe - com o tom minimalista e redutor das imagens o impacto visual primitivo tem primazia sobre tudo o resto: no tanque as personagens são definidas pelas suas acções, são como telas vazias sem passado que vão sendo preenchidas com as suas escolhas.

A dicotomia entre opções e consequências das acções, da possibilidade limitada de intervenção no exterior, da separação entre as duas dimensões é melhor exemplificada em duas sequências chaves para o próprio filme: na chegada a uma vila, a destruição e a morte já estão por todo o lado e a mira apenas consegue ver bocados desligados que apenas nos proporcionam uma realidade fragmentada, incapaz de se suster a si própria ou fornecer um quadro geral - as lágrimas de um cavalo abatido mas ainda vivo, um rapaz que escapa uma loja onde todos foram mortos, um velho sentado à porta de um café destruído. Esta separação-impotência é ainda mais exarcebada na sequência de ataque a um prédio, onde somos colocados na pele do atirador do tanque, que assiste congelado ao sequenciar dos eventos, testemunha activa da destruição duma família pela guerra – quando o único sobrevivente, uma mulher, deambula para a rua como que colocada no centro da calamidade, como significante vítima da crueldade humana, nua porque não há mais nada além do que vemos naquele momento, ninguém é capaz de mostrar a empatia necessária, e é aqui que a natureza voyeur do filme se define sem qualquer ambiguidade, estremecendo qualquer possibilidade de redenção, sem recuperação possível. A separação em relação ao resto do mundo, quebrada intermitentemente com a entrada do soldado superior no tanque para os meter em ordem e trazer notícias da outra realidade, vai ampliar as tensões entre os quatro soldados e defini-los, serão ao mesmo tempo torturadores e companheiros uns dos outros na travessia pelo inferno. É como se existisse uma intenção do filme em personificar através das personagens a deterioração causada pela guerra e que a introdução de um soldado sírio capturado e um mercenário ajudam habilmente a evidenciar. E é claro, com o avanço do tanque, com a proximidade do fim, aumenta o isolamento.

Lebanon como experiência sensorial primitiva que é pelo impacto primordial dos acontecimentos e retrato crescente de desesperação que vai construindo, funciona acima de tudo pela catarse visceral da experiência e confinamento dos soldados, do que por qualquer procura de intelectualizar ou necessidade de encontrar profundeza emocional nas acções das personagens – as tentativas de conferir personalidades próprias fora do contexto em que se encontram, como a tentativa de um deles contactar os pais ou a história de outro sobre uma professora, podem ser lidas como tentativas surreais de humanizar as personagens num contexto de saturação de dessensibilização, de absurdo emocional. É um dos problemas do filme: se o desgaste a partir de um certo momento atinge quase um estado de fadiga mental, um ponto a partir do qual já não parece fazer diferença ou afectar os soldados, o filme cai numa certa estagnação visual, recorrendo demasiadas vezes aos olhares em branco dos actores, planos que dependem em demasia de inferirmos algum significado próprio a esses olhares, de lhes atribuir alguma profundidade emocional em vez de se contentar com o horror do vazio. Porém tudo é compensado com a imagem final do filme, que justifica a repetição anterior como modo de exaustão até atingir o fim daquele huis clos.

junho 05, 2010

Top10: Bernardo Bertolucci


10. Touch of Evil de Orson Welles
9. Accattone de Pier Paolo Pasolini
8. Marnie de Alfred Hitchcock
7. City Lights de Charlie Chaplin
6. Blue Velvet de David Lynch
5. Stagecoach de John Ford
4. À bout de souffle de Jean-Luc Godard
3. Germania anno zero de Roberto Rossellini
2. Sansho Dayu de Kenji Mizoguchi
1. La Règle du jeu de Jean Renoir

I vinti (1953)

I vinti (Os vencidos) de Michelangelo Antonioni, 1953, 6/10

I venti é Antonioni com o indicador de cinismo e amargor no máximo, logo no início de carreira. Um ataque incriminador à geração a viver a adolescência no periodo pós-guerra, é também um exercício experimentalista na estrutura do filme. Com um prólogo violentíssimo em tom documental, que sob um voice-over acusatório destila imagens de protestos e recortes de jornais com notícias sobre crimes para estabelecer o ponto de partida, uma reflexão-manifesto sobre o descarrilamento moral de uma parte dessa geração, que depois da miséria da guerra vive agora em segurança económica e vê a partir disso uma atracção pelo hedonismo e fascínio mediático na procura de afirmação individual, tudo abordado e desmascarado no discurso inicial:

"Estas histórias são os feitos daquela que foi chamada de geração queimada, daqueles que no tempo da guerra eram crianças e que quando abriram os olhos viram no mundo um espectáculo de violência. E tão imponente e invasor era esse espectáculo que parecia velar qualquer outro valor como a bondade, a generosidade, a inteligência e o sacrifício. Aquela violência parecia triunfante, segura de si, a sua lei era o desprezo de cada lei, a sua característica social era o desprezo de cada sociedade, no triunfo do indivíduo audaz, cínico, destituído de remorsos, que dá origem a um novo tipo de violência, bem diferente daquele que nasce da miséria e desigualdades socias. Não era um qualquer complexo de inferioridade social que os impelia ao delito, mas o desejo de praticar gestos excepcionais, de emergir. Tudo se unia num só ideal: a celebração da violência como triunfo pessoal. (..) contamos as nossas histórias, não as embelezaremos, nem enriqueceremos de um fascínio que na realidade não têm. Contaremos sem colori-las, sem ênfase porque vista a sua realidade observada sem ornamentos é uma realidade triste e incapaz de seduzir alguém."

O filme é dividido em três capítulos estanques que contam a mesma história em contextos sociais semelhantes e diferenciam-se essencialmente pelos personagens e pela localização: França, Itália e Inglaterra. O capítulo francês é talvez o melhor conseguido: acompanhamos um grupo de jovens numa viagem ao campo que parece à primeira vista uma escapadela às aulas mas que tem contornos mais sinistros. A construção do segmento estabelece a linha narrativa que será seguida nos 3 capítulos: depois de introduzir as várias personagens à saída de casa e sublinhar o alheamento por parte dos pais, e estabelecer que as personagens são todos filhos da classe média longe da miséria pós-guerra, o filme introduz logo algumas pistas para o que se vai desenrolar a seguir – neste caso um dos rapazes surropia uma pistola do armário do pai e outro prepara as falsas aparências que vai tentar sustentar. É este personagem que estará no centro desta história: um rapaz com pretensões a playboy que engana os seus colegas mantendo uma ar de riqueza imunda e que se vangloria disso à frente dos outros, acendendo cigarros em notas a arder – é a inveja que provoca nos outros ainda dependentes dos seus pais que vai ser a sua condenação. É criado um painel de personagens com diferentes motivações: uma lânguida rapariga é provavelmente a mais inteligente do grupo pela forma como manipula os corações dos outros rapazes, sem realmente estar interessada em alguém, apenas procura uma forma de sair dali, uma aventura, e enquanto que um dos rapazes vai tomar a acção responsável pelo seu descalabro colectivo apenas para agradar a essa rapariga, o seu irmão acaba por o abandonar e entrega-lo no fim. Apesar do cinismo pretendido existe ainda algum fascínio sentimental pelo destino destas personagens, o distanciamento ainda não é total, existe algum interesse em explorar as motivações das personagens e uma ligação ao seu inevitável destino trágico, em investigar a perda de inocência e acção irreflectida, espelho da imaturidade e impulsividade dos envolvidos.

Se o segmento francês funciona precisamente pela réstia de compaixão e cinismo bem medido, os capítulos seguintes relevam um maior distanciamento, que embora funcione como manifesto crítico, não acompanham o capítulo francês na exploração das personagens e da sua queda no abismo. O capítulo italiano é marcado por uma secura emocional, uma exposição-constatação dos factos sem preocupação de empatia, abandonando as personagens às suas escolhas e mostrando actos violentos sem grande comiseração ou surpresa pelos mesmos, algo explorado também por Bertolucci na sua primeira obra “La commare secca” (1962) baseado num argumento áspero de Pasolini. Aqui acompanhamos um jovem, que apesar de bem na vida, procura ainda mais para se afirmar indivualmente, neste caso recorrendo ao crime, que é exemplificado pela forma como assassina a sangue frio e sem escrúpulos um guarda nocturno – no dia seguinte confessa-se à namorada, mas confessa-se sobretudo sem arrependimento, perdido num mar de narcisismo, incapaz ele próprio de empatia, sem se aperceber da sua ruína até ser tarde demais. É talvez o capítulo mais convencional, com tangentes a um cinema noir mas efectivo na construção de um desespero reprimido. O capítulo inglês é sobretudo fruto do carácter estranho da personagem principal e da sua carência mórbida e demanda por recognição mediática do seu génio auto-proclamado, numa exploração mais directa do papel dos jornais na afirmação dos indíviduos que procuram a glória através do crime certos da atenção sobre eles próprios que se seguirá - acompanhamos um repórter cansado do mundo à medida que investiga um homicídio e é apresentado ao protagonista deste segmento, uma testemunha do crime que acaba por confessar o crime a troco de uma coluna no jornal, insanidade apenas comparável ao sorriso com que ouve o relato do seu feito em tribunal. Antonioni usa aqui o velho jornalista para contrapor desilusão à imaturidade do assassino e porventura reverberar também o seu estado de espírito.

Antonioni recorre sistemáticamente a uma estrutura de composição que utiliza durante este filme, que é ainda reflexo de um formalismo clássico – a delinquência aqui é apenas na história escolhida. Uma composição normal consiste em 3 momentos definidos durante o plano de cerca de um minuto de duração: 1) a introdução ou preparação, em que escolhe a colocação da câmara e estabelece o fundo de acção, fundamentado essencialmente na localização escolhida para a cena 2) o desenvolvimento, em que as personagens caminham entre marcas pré-definidas até chegaram ao centro da composição e atingir o momento definidor da cena em que o seu objectivo é atingido 3) o epílogo ou conclusão, em que a duração se arrasta alguns segundos depois do objectivo central de cada cena, normalmente observando as personagens à medida que abandonam o enquadramento, proporcionando espaço livre para a reflexão. É um método utilizado consistentemente, quase de forma rígida, sem grandes desvios excepto no capítulo italiano onde durante uma cena de acção há por momentos uma montagem dinâmica e com enquadramentos mais livres, e é uma escolha deliberada que foca a atenção apenas na história e personagens, que serve o propósito enunciado de não embelezar as histórias, filmando sem ornamentos para chamar a atenção para o essencial – recorrendo mais uma vez ao prólogo:
"Derramar sangue tinha para eles o único objectivo de afirmar o vitorioso culto de si mesmo. Quando estes protagonistas se apercebem da sua miséria de e de serem vencedores na mais inútil das batalhas, já é tarde."